sábado, 27 de novembro de 2010

RETRATOS DE UM CIDADÃO COMUM, Crônica

É quase manhã, o sol nem sequer deu uma olhadinha no horizonte e mais uma vez levanto-me da cama com a sensação de que a noite precisaria ter pelo menos duas horas a mais. Numa expectativa de que esse saldo de tempo fosse suficiente para esquecer a rotina do dia anterior. Olho para o relógio, vejo que o tempo passa numa marcação ininterrupta, no relógio os ponteiros apontam para o dígito cinco em algarismo romano. O cinco em sua representação em “V” significa muito nessa hora, não só pela informação efêmera do tempo, afinal são 5:26 e tic-tac... Nesse diálogo cotidiano, entendo a representatividade simbólica do tempo nessa sociedade. Temos horas pra tudo, - é hora disso, hora daquilo, hora daquilo outro... Ora bolas, como viver assim?! Numa primeira olhada, ainda sonolento, entendo o que ele me diz: - Le”V”ante, “V”ista-se, “V”á e “V”ença mais esse dia. Sigo todas as ordens como um servo desse mesmo tempo.

Passo pelo espelho e nem me dou conta de uma excitação latente dos sonhos noturnos pouco aproveitados. Namoradas antigas vagam às vezes, sobre meus sonhos. Minha esposa ainda dorme. Vou direto ao banheiro. Lá, vejo uma projeção imaginária de como será o meu dia. No relógio vejo que o tempo é massacrante, já se passaram nove minutos, tic-tac...

O dia começa e mais uma vez, saio com destino ao trabalho. Na esquina próxima, espero o ônibus que raros são os momentos em que encontro um lugar para sentar. Em pé ou sentado é comum ouvir histórias de passageiros, histórias que iniciam e muitas vezes não terminam, pois é freqüente a entrada e saída de pessoas nos pontos espalhados pelo percurso.

Certa vez ouvi uma história de amor, onde uma mulher, havia se apaixonado por um garoto. No pequeno trajeto em que ouvi essa história, pude perceber pela entonação da voz e dos detalhes quentes narrados pela moça, o quanto o rapaz em questão tinha ganhado a admiração dela. Ingrid! Isso, acho que esse é o nome mencionado por sua interlocutora, que ouvia a conversa e prestava atenção nas descrições do rapaz da narrativa. Mesmo num ambiente coletivo, a garota continuava o papo. Muitos foram os momentos em que as pessoas olhavam para as duas num diálogo incessante e sem intimidação, Ingrid continuava sua descrição minuciosa. Nesse instante se via o um prazer estampado em sua face, só pelo simples compartilhamento de suas aventuras para a amiga.

No ônibus indo ao trabalho, já ouvi histórias de amor, brigas, fofocas e casos complexos. É uma audição quase que inevitável. Mesmo que não queira, ouvi histórias de vida de pessoas que nem conheço. Já ouvi casos que se iniciam e não terminavam; brigas que não se resolvem. O sobe e desce faz com que histórias não se concluam, vivo uma aflição constante porque me apego com os casos.

A cada dia, a cada semana no percurso de ida e volta que dura em torno de 30 minutos. Eu, personagem típico de uma cidade qualquer, tomo um ônibus repleto de histórias, onde os personagens sempre são os passageiros de uma vida coletiva.

Final da tarde, cansado de um dia inteiro de ligações a trabalho. Chego em casa e mais uma vez ouço para o tic-tac... A TV ligada minha esposa assiste ao telejornal, no ar uma reportagem de mais um caso de assassinato sem solução.

Deito, durmo... são 5:25 tic-tac...

JOANEY TANCREDO